Os Intocáveis

Quando o Divino Quebra Nossas Categorias Humanas

Uma reflexão sobre João 4:3-29 e nossa tendência contemporânea de criar hierarquias invisíveis

Algoritmo da Exclusão

Vivemos na era dos algoritmos. Eles decidem quem vemos nas redes sociais, que conteúdo consumimos, até mesmo com quem nos relacionamos nos aplicativos de namoro. Mas há um algoritmo muito mais antigo operando em nossas mentes: o algoritmo da categorização social. E ele é implacável.

Judeu ou samaritano. Homem ou mulher. Educado ou ignorante. Moral ou imoral. Influente ou irrelevante.

Há 2.000 anos, esses rótulos determinavam não apenas status social, mas também quem tinha direito à dignidade, à voz, ao pertencimento. Hoje, nossas categorias mudaram de nome, mas a lógica permanece assustadoramente familiar.

Geografia do Preconceito

“Mas ele precisava passar por Samaria” – uma frase aparentemente simples que revela uma revolução silenciosa.

A maioria dos judeus escolhia o caminho mais longo para evitar Samaria. Não era apenas uma questão geográfica; era uma declaração moral. Era o equivalente antigo ao atravessar a rua para evitar certas pessoas, ou silenciar certas vozes nas redes sociais. Era a geografia física moldada pela geografia do coração.

Jesus, porém, escolheu a rota que todos evitavam. Não por conveniência, mas por convicção.

E se a necessidade que Jesus sentia não fosse apenas moral, mas profética? E se ele soubesse que, séculos depois, suas comunidades de seguidores recriariam os mesmos muros que ele veio derrubar?

Intocáveis de Hoje

Quem são os samaritanos contemporâneos? Quem são os que classificamos, consciente ou inconscientemente, como “não-povo”?

  • O morador de rua que fingimos não ver
  • O imigrante que “rouba nossos empregos”
  • O jovem da periferia com gírias que não compreendemos
  • A mãe solteira julgada pelos “valores familiares”
  • O político do partido oposto que desumanizamos
  • O LGBTQIA+ que mantemos à distância “teológica”
  • O dependente químico que rotulamos como “perdido”

A lista é incômoda porque é real. E é real porque somos humanos.

Subversão Radical do Poço

No poço de Jacó, Jesus fez três coisas que desafiaram não apenas as convenções sociais, mas toda uma cosmovisão:

1. Ele Democratizou a Dignidade

Jesus ofereceu à mulher samaritana exatamente a mesma mensagem que havia oferecido a Nicodemos. Não uma versão “simplificada” ou “adaptada às suas limitações”. A água viva era a mesma, independente do recipiente.

Oferecemos o mesmo evangelho a todos, ou temos versões “premium” para alguns e “básicas” para outros?

2. Ele Nomeou o Inominável

“Vai, chama o teu marido”. Jesus não evitou o elefante na sala. Não fingiu que o passado dela não existia. Mas também não a definiu por ele.

Vivemos numa cultura que ora ignora o pecado (relativismo) ora o transforma em identidade permanente (cancelamento). Jesus ofereceu uma terceira via: reconhecimento sem condenação definitiva.

3. Ele Tocou os Intocáveis

Não fisicamente – não há registro de toque físico neste encontro. Mas Jesus a tocou de forma muito mais profunda: ele a viu como teóloga, como pensadora, como alguém capaz de fazer perguntas importantes sobre Deus.

Numa sociedade que negava às mulheres o direito de estudar teologia, Jesus transformou uma samaritana de passado questionável na primeira evangelista intercultural dos Evangelhos.

Desconforto Necessário

Esta história nos confronta com uma verdade desconfortável: nossa ortodoxia pode conviver com nossa xenofobia. Podemos ter a teologia certa e o coração errado. Podemos defender a santidade de Deus enquanto desprezamos os santos em potencial.

Nicodemos, o teólogo exemplar, saiu da conversa com Jesus ainda confuso. A samaritana “herética” saiu correndo para evangelizar sua cidade.

O que isso nos ensina sobre quem Deus escolhe usar?

Provocação do Século XXI

Se Jesus caminhasse entre nós hoje, por onde ele “precisaria passar”? Que bairros? Que perfis no Instagram? Que grupos do WhatsApp? Que espaços evitamos por “pureza teológica” ou “conveniência social”?

E mais desafiador ainda: quem são os Nicodemos de hoje que podem estar mais longe do Reino que os “samaritanos” que julgamos?

Convite Transformador

Esta não é uma história sobre tolerância superficial ou relativismo teológico. É sobre reconhecer que Deus tem um gosto “eclético” por pessoas – e que suas escolhas frequentemente desafiam nossas lógicas humanas.

É sobre perceber que quando criamos hierarquias de dignidade baseadas em raça, classe, educação, moralidade passada ou posicionamento político, estamos operando com algoritmos humanos, não divinos.

É sobre entender que talvez sejamos nós os que precisamos ser tocados pelos “intocáveis”.

A água viva que Jesus oferece não faz distinção entre recipientes limpos ou quebrados, novos ou usados. Ela transforma por dentro, independente da aparência externa. Talvez seja hora de questionarmos não apenas quem são os intocáveis em nossa sociedade, mas por que ainda os consideramos assim.

Porque no final das contas, todos fomos samaritanos um dia. E pela graça, todos podemos ser instrumentos de águas vivas para outros samaritanos hoje.


“Deus não faz acepção de pessoas.” – Uma verdade simples que continua revolucionária.

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